Os jovens Maurício e Nair estão tentando a sorte nos circuitos faiscantes dos serviços globalizados. Maurício começou a trabalhar em 1999. Tinha então 16 anos e conseguiu, por indicação de conhecidos de seus pais, um emprego de office-boy no Parque Aquático The Waves. Seis meses depois, o parque foi à falência e fechou. No seu lugar foi construído um hipermercado Extra e, ao lado, uma das maiores e mais sofisticadas academias de ginástica, a caríssima Unysis. Depois, trabalhou como office-boy numa agência de emprego, na qual progrediu para auxiliar administrativo. Mas a quantidade de serviço diminuiu e a empresa se afundou em dificuldades financeiras. Ele amargou dois anos de desemprego, com inúmeras e persistentes tentativas de achar trabalho, sem sucesso. Quase sempre em lojas de shoppings centers, algumas de grifes famosas: "Eu queria trabalhar com o público, é isso o que eu gosto, e daí falei – 'vou me dar bem'". Fez entrevista na Ellus, grife conhecida de jeans, mas a concorrência era muito grande – "todo mundo querendo entrar, pessoal que trabalha, pessoal que estava cursando faculdade, tinha até modelo, sabe?". Espalhava currículos por onde passava, sem conseguir nada. Então surge a oportunidade, quando uma vizinha o apresenta para a assessora de imprensa de um escritório de promoção de eventos culturais. A empresa fica no rico bairro do Morumbi, na avenida Giovanni Gronchi. O seu trabalho é atender os telefonemas, cuidar das agendas, marcar entrevistas. Esse emprego joga Maurício em um mundo que seria inimaginável para seus pais. Vez por outra, acompanha os eventos organizados, por exemplo, no Olympia, badalada e prestigiosa sala de shows. Maurício transita pelo "circuito nobre" da cidade: shoppings centers, bares e pontos de encontro no Centro, ou os agitadíssimos bairros de classe média, Moema e Vila Nova Conceição, Pinheiros e Vila Madalena. Diz que começou a transitar pelos circuitos badalados já nos tempos da agência de empregos: fez amigos, passou a freqüentar outros circuitos, conheceu muita gente e vez por outra conseguia entrar de graça nas grandes casas de espetáculo, pelas mãos de "gente conhecida" lá de dentro. "Tenho amigos de São Paulo inteiro", diz Maurício.
É bem possível que o rapaz exagere e haja um tanto de ficção nisso tudo. Mas o fato é que o rapaz já está mirando para outros lugares e de outros lugares. Sonha fazer uma "faculdade de comunicação" e encontrar o seu lugar nesses faiscantes circuitos dos modernos serviços da "cidade global". Acha que tem jeito e talento para isso. É muito provável que esse sonho dourado não vá longe e que o rapaz logo bata de frente nas regras mais do que excludentes dos modernos-moderníssimos circuitos globalizados. Mas os lances da vida já configuraram outro jogo de referências e outros prismas pelos quais a cidade se lhe apresenta: diferente da geração dos seus pais, que valorizam exatamente essa espécie de "mundo à mão" que a favela lhes oferece – a família que está por perto, os empregos ali do lado. Para Maurício, na favela tudo é longe e a periferia não tem nada, os lugares são perigosos e, além do mais, é tudo muito feio: "Aqui não tem nada, não tem nem paisagem agradável para ver".
Nair, 17 anos, prima de Maurício, começou a trabalhar muito cedo e seus percursos dizem algo dos novos circuitos dos empregos da região. Em 1995, aos 11 anos de idade, trabalhava em uma pequena firma terceirizada que montava brinquedos para o McDonald's. Várias meninas suas vizinhas trabalhavam lá. Quem tocava o negócio era uma conhecida da família, na garagem de uma casa em uma rua próxima à avenida Giovanni Gronchi, ponto de ligação entre a pauperizada região em que mora e o riquíssimo Morumbi. No seu entroncamento, ao lado do hipermercado Carrefour, está a loja do McDonald's. Em 1998, trabalhou seis meses numa empresa que monta canetas para propaganda: era ano eleitoral e havia muito serviço. Depois, em um período em que não conseguia nenhum emprego, resolveu montar, junto com a mãe, um negócio de revenda de roupas. Em 2001, aos 17 anos, conseguiu, por meio da indicação de uma amiga, emprego como atendente na Companhia Atlética, no Shopping Morumbi: lugar de ricos e famosos em busca de "saúde e boa forma". Para ela, a boa sorte chegou. É de lá que Nair espera alçar vôo e conseguir empregos mais promissores nas lojas desse luminoso circuito do consumo de alta renda. Nair também pensa em seu futuro: quer aprender inglês, fazer um curso de enfermagem, juntar algum dinheiro nessa profissão, para então realizar o sonho de uma faculdade de fisioterapia. Enquanto espera a boa sorte, Nair acompanha o primo Maurício em suas andanças pela cidade, entre shoppings centers e bares de Vila Madalena, Pinheiros e Moema.
Os dois primos têm em mira outros horizontes. Maurício empenha-se em melhorar de vida: completou o segundo grau e quer continuar os estudos, nunca vacilou na procura do emprego e tenta tirar tudo de si para encontrar um lugar melhor. Enfim, Maurício é um empreendedor, como sua prima Nair. É assim que ele se enxerga, e ela também. E, para ambos, é esse o crivo que faz a diferença com relação a seus amigos de infância e vizinhos. "Também tem gente como eu", diz Maurício, "gente que batalha e quer mudar de vida." Mas avalia: "A maioria fica onde está, vai se acomodando, não quer saber de nada, não tenta outros vôos para suas vidas". Essa é uma clivagem complicada, bem sabemos. O ethos empreendedor do individualismo mercantil está aí bem cifrado, também o sabemos. Mas é nesse código que ele formula as esperanças de construir uma vida plausível. É nessa clivagem que está o nervo (um deles) exposto do mundo. O problema não é morar na favela. São mundos diferentes, mas o domínio dos dois códigos não é excludente, e eles transitam entre um e outro com desenvoltura.
Maurício e sua prima Nair são personagens que esclarecem algo sobre o modo como a dobradura entre os mundos é feita, entre a materialidade da cidade e seus circuitos e a natureza das conexões (e dos conectores) que operam esse jogo de acessos e bloqueios. É aí, nessas dobraduras da vida social, que o drama se configura. Por isso mesmo os percursos desses jovens personagens nos ajudam a compor o quadro das complicações atuais: o mundo dos serviços e seus circuitos modernos, verdadeiro campo de gravitação (referências, possibilidades e também bloqueios) em um cenário de encolhimento dos empregos e de trabalho precário. E ainda: a violência de todos os dias e os "caminhos tortos" da vida que vão capturando muitos de seus vizinhos (como em todos os lugares) nos circuitos do tráfico de drogas e da criminalidade violenta. Tudo isso compõe um conjunto de coordenadas que ajudam a desenhar uma cartografia social, seguindo as linhas de força que atravessam o mundo social e seus pontos de ruptura, suas passagens e também suas ambivalências.
Jorge, o trabalhador precário: no circuito fechado das agências de trabalho temporário
Os percursos desses jovens encantados com os circuitos faiscantes da "cidade global" têm que ser confrontados com outros, com os daqueles que transitam nos circuitos que se alimentam da riqueza da cidade global, sem conseguir romper o círculo de ferro das agências de trabalho temporário. Assim é a história de Jorge, 31 anos, o filho mais novo do patriarca Genésio e tio, portanto, dos jovens empreendedores.
O rapaz tem uma história em tudo diferente dos irmãos mais velhos. Entrou na vida adulta em um mundo já revirado, não encontra alternativas fora do trabalho precário e amarga períodos prolongados de desemprego. Impossível reproduzir a estável trajetória de trabalho de seus irmãos. Mas ele viveu a virada dos tempos também pelo outro lado, o da violência, que em poucos anos dizimou quase todos os seus amigos de infância e adolescência. E liquidou um animadíssimo grupo de som que ele comandava junto com amigos, abastecido com CDs e discos comprados nas famosas galerias do Centro da cidade, ponto de encontro de jovens aficionados do rap e do hip-hop. Como ele conta, alguns foram mortos, outros estão fugidos. Ele também "contrariou a estatística", para evocar o trecho de uma letra de música dos Racionais MCs, grupo de rap que é uma referência importante nas periferias da cidade e certamente um pólo de identificação para Jorge, como para tantos outros (cf. Khel, 2000). Diferente dos sobrinhos empreendedores, as luzes faiscantes dos serviços globalizados não fazem parte de suas cogitações, e ele tampouco sonha em morar em outras paragens. É lá mesmo, na periferia (é ele que usa o termo, "é tudo periferia"), que constrói conexões de sentido de sua vida. Como ele diz, "periferia é isso aí... aquela música dos Racionais diz tudo".
Jorge tem uma trajetória ocupacional errática, não consegue se estabelecer nos empregos e vai seguindo os anos entre períodos de trabalho precário e desemprego. O único traço de continuidade em sua história ocupacional é a intermediação das agências de emprego temporário, e o único traço em comum com seus irmãos mais velhos é a circulação pelo que poderíamos chamar de mercado local. Mas se para estes o raio de circunferência dos empregos foi em grande parte demarcado pelas redes sociais em que circulavam informações e aberturas de oportunidades, no caso de Jorge os tempos são outros e a entrada no mercado se faz em boa medida pela intermediação das agências. São elas que arbitram e decidem a locação dos empregados, e as escalas de distância e proximidade é justamente um dos critérios. Não poucas vezes Maurício viu sua chance de emprego se esvanecer por não morar nas proximidades da empresa.
É verdade que alguns furam o cerco e conseguem emprego. Mas entram então em um circuito fechado, muito difícil de ser rompido. Assim acontece com Marcelo, 22 anos, que mora em um bairro ao lado. Tem o secundário completo, fez curso de informática e outro com o indefinível nome de "técnicas comerciais". Conseguiu um emprego de caixa no Carrefour. Trabalho temporário. Até que se saiu bem e conseguiu ser contratado. Mas, ele pondera, caixa de supermercado não é futuro nem dá futuro para ninguém. No máximo, de caixa a repositor de estoques. Marcelo espera mais da vida. Contudo, ele diz que, uma vez em supermercado, sempre em supermercado – "no que você coloca a experiência de supermercado no currículo, um American Express, uma Xerox, uma firma não vai te chamar, o cara da empresa vai te olhar e vai falar, o cara é supermercado, vai trabalhar em supermercado". Saiu desse emprego e tentou outras entradas no mercado de trabalho: apelou a amigos e conhecidos, espalhou currículos por todos os cantos. Sem sucesso. Depois de algum tempo, foi chamado para trabalhar no hipermercado Extra. "Caí na real", diz Marcelo, "não tem jeito", ou isso ou o desemprego. Quando o encontramos, em 2001, havia sido promovido a repositor de estoques.
1 comentários:
Eu quero uma registradora de verdade!!!!
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